Pesquisadores que acompanham a trajetória das rupturas institucionais no Brasil afirmam que a tentativa de impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atribuída a Jair Bolsonaro e seus aliados após a eleição de 2022, reúne elementos já vistos em outros momentos da história republicana, mas acrescenta traços inéditos. Entre esses pontos singulares, destacam-se a defesa de interesses corporativos dos militares, o uso sistemático de redes sociais para mobilização e o ambiente de um populismo de extrema direita com alcance global.
O historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, identificou 14 golpes ou tentativas de golpe na República. Em todas, a participação de integrantes das Forças Armadas foi determinante. Segundo ele, no entanto, a motivação por trás de cada investida mudou ao longo do tempo. No período inicial, a justificativa era “refundar a República”; no tenentismo dos anos 1920, predominou a denúncia de fraudes eleitorais; a partir de 1935, a pauta anticomunista guiou episódios como 1937, 1945 e o golpe de 1964. No caso bolsonarista, Fico sustenta que o impulso central não é ideológico, mas a preservação de vantagens materiais, como o regime previdenciário diferenciado e milhares de cargos ocupados por militares no governo entre 2019 e 2022.
Para a historiadora Heloisa Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, a diferença fica ainda mais nítida quando se compara 1964 a 2022. Na década de 1960, argumenta, havia um projeto explícito de desenvolvimento nacional calcado em um complexo industrial militar; hoje, não se observa proposta equivalente. Apesar disso, ela nota pontos de continuidade, como a retórica anticomunista – que considera quase caricatural no presente – e o apelo religioso, antes majoritariamente católico e atualmente associado a líderes evangélicos.
O 8 de Janeiro de 2023, quando manifestantes invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, ilustra a combinação de velhos padrões e novas ferramentas. Odilon Caldeira Neto, da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Observatório da Extrema Direita, afirma que a ação repetiu a lógica golpista de outras eras, mas incorporou fortes referências internacionais, a exemplo do ataque ao Capitólio nos Estados Unidos em 2021. Para ele, as redes sociais permitiram conferir aparência de movimento espontâneo, ao mesmo tempo em que disseminavam discursos que incentivaram a radicalização fora de partidos, associações civis ou estruturas religiosas tradicionais.
Caldeira observa que muitos participantes do 8 de Janeiro afirmavam representar “o povo” em uma narrativa populista típica da extrema direita contemporânea. Nessa perspectiva, a comunicação digital não seria apenas um meio, mas parte de uma nova forma de organização política em rede, capaz de articular mobilizações sem liderança formal visível.
A cientista política Maria Celina D’Araújo, pesquisadora do CPDOC/FGV, considera o período pós-Segunda Guerra, conhecido como República de 46, o mais próximo do cenário atual em termos de estabilidade democrática. A diferença, segundo ela, reside no nível de transparência dentro das Forças Armadas. Naquele momento, era possível identificar claramente oficiais favoráveis ou contrários ao governo; hoje, os posicionamentos internos permanecem pouco conhecidos.
D’Araújo destaca ainda o fortalecimento do Estado de Direito desde a Constituição de 1988. Na sua avaliação, a inexistência de adesão institucional ampla foi decisiva para frustrar a tentativa de subversão constitucional. Instituições como o Supremo Tribunal Federal agiram rapidamente, enquanto as próprias Forças Armadas, como entidade, não se engajaram no plano golpista.
Para Fico, o processo em curso no STF contra Bolsonaro e militares representa um marco. É a primeira vez que oficiais chegam ao banco dos réus por conspiração antidemocrática, o que sinaliza avanço em relação ao passado, quando iniciativas semelhantes terminavam sem responsabilização judicial. O desfecho, ainda pendente, poderá consolidar esse novo momento, em que a atuação de instituições mais robustas impôs obstáculos à repetição de rupturas que se estendem desde o fim do século XIX.

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