Molécula em saliva de carrapato abre caminho para tratar febre maculosa

Investigadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) isolaram uma molécula presente na saliva do carrapato Amblyomma sculptum que pode servir de base para novas terapias contra a febre maculosa. O composto, baptizado de Amblyostatin-1, demonstrou propriedades anti-inflamatórias e imunomoduladoras em ensaios laboratoriais.

Descoberta resulta de colaboração internacional

A equipa liderada pelo imunologista Anderson de Sá-Nunes reuniu cientistas brasileiros, gregos, checos e espanhóis. O trabalho recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os resultados foram publicados na revista Frontiers in Immunology a 16 de julho.

Nos testes, os investigadores extraíram saliva de exemplares do carrapato Amblyomma sculptum, principal vector da febre maculosa no Brasil. A análise identificou Amblyostatin-1 como membro da família das cistatinas, conhecidas por inibir catepsinas envolvidas na activação de células de defesa. Essa inibição atrasa a resposta imune inicial, facilitando a instalação da bactéria Rickettsia rickettsii, agente causador das formas mais graves da doença.

Como actua a Amblyostatin-1

Segundo os autores, a molécula funciona como imunomodulador silencioso: não é prontamente reconhecida pelas células de vigilância, impedindo a formação de anticorpos que bloqueiem a sua acção. Em ensaios com camundongos, a substância reduziu a inflamação cutânea e aumentou a produção de IL-10, citocina com efeito anti-inflamatório.

Esta característica pode ser vantajosa em condições que exigem controlo prolongado da resposta imune, como doenças inflamatórias crónicas ou auto-imunes. A persistência do efeito, sem desencadear reacções adversas imediatas, coloca a Amblyostatin-1 como possível candidato a agente imunobiológico.

Impacto potencial em saúde pública

A febre maculosa é transmitida pela picada do carrapato-estrela, comum em capivaras e bovinos. Entre 2014 e 2025, o Brasil notificou 59 000 casos suspeitos e confirmou 2 700 infecções, com 782 óbitos. A taxa de letalidade atinge 29,1 %, sublinhando a importância do diagnóstico precoce e do tratamento rápido com antibióticos.

Durante a alimentação, o carrapato injecta simultaneamente a bactéria e moléculas que suprimem a imunidade do hospedeiro. Ao compreender esse mecanismo, os cientistas pretendem desenvolver estratégias que neutralizem a infecção nos estágios iniciais e reduzam a mortalidade.

Próximos passos da investigação

Embora os resultados sejam promissores, ainda faltam estudos que confirmem a segurança e a eficácia da Amblyostatin-1 em humanos. Serão necessários ensaios pré-clínicos adicionais para avaliar toxicidade, dose ideal e forma de administração. Caso os dados se mantenham favoráveis, a molécula poderá avançar para fases clínicas e, futuramente, originar medicamentos de uso hospitalar ou ambulatorial.

Além da febre maculosa, a equipa avalia aplicações em outras patologias marcadas por inflamação excessiva, como artrite reumatóide e doença de Crohn. O objectivo é adaptar a molécula ou desenvolver derivados sintéticos que ofereçam maior estabilidade e controlo farmacológico.

Relembrar medidas de prevenção

Enquanto não surgem tratamentos baseados na Amblyostatin-1, as autoridades de saúde recomendam evitar o contacto com carrapatos. A inspecção do corpo a cada duas horas em áreas de mata, uso de roupa clara e aplicação de repelentes são medidas eficazes. Caso seja detectado um carrapato, a remoção deve ser feita com pinça, puxando-o suavemente sem esmagar o animal, para reduzir o risco de contaminação.

O tratamento antibiótico da febre maculosa deve iniciar-se nos primeiros dois a três dias de sintomas, período em que a resposta clínica é mais favorável. Atrasos podem levar a falência de órgãos e morte.

A descoberta da Amblyostatin-1 reforça a importância de estudar a fisiologia dos vectores de doenças. Ao transformar um mecanismo de evasão imunológica em recurso terapêutico, a investigação abre uma via inovadora para controlar infecções e inflamações de difícil manejo.

Deixe uma resposta